terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Rua abaixo, rua acima... I

Tinha cabelo negro, pele morena, olhos escuros, um corpo forte e não era muito alto para os seus catorze anos. Sentava-se numa mesa redonda que ficava ao fundo da sala, longe do quadro. Era meigo e gentil e se intervinha num conflito era para separar e socorrer. Dos cinco dias da semana, faltaria um de vez em quando. Os trabalhos não eram coisa boa para si, demorava sempre tempo demais para os terminar e reclamava, muitas vezes, com voz serena que não os sabia fazer. Lia mal e escrevia pouco ou nada. Faltava quase sempre à tarde, por vezes, se eu lhe pedisse muito, ele vinha.
Acho que se sentia crescido demais junto dos outros, com um ano ou dois a menos. Posso afirmar, daquilo que conheci dele, que não atribuía sentido à escola ou à aprendizagem, que se sentia num lugar estranho. Apesar disto, investi nele, tentei estimulá-lo, fazê-lo sentir feliz na Escola.
Um dia irritada por não ver nenhuma coragem (poderemos pedir coragem, para mudar o seu mundo, a uma criança/adolescente?) da sua parte, por não ver nenhuma retribuição e creio que ansiosa e desanimada, a prever que tudo terminasse no fim daquele ano, disse-lhe:
- " O que queres para a tua vida Cândido? Já pensaste nisso? Não posso acreditar que queiras passá-la " rua abaixo, rua acima..."...

Terminado o ano, ainda frequentou durante alguns meses o 5º ano, acabou por desistir...
Terá hoje 16 anos.
----------------------------------------------------------------------------------
Cada dia que passo na rua ao lado daquele bairro cigano, olho e espreito à procura dos meninos e meninas que vi crescer. Às vezes vejo-os, ao longe, de mãos dadas com outros mais pequenos, a lavar roupa, no meio dos adultos em grupo, rua abaixo, rua acima.
Penso muitas vezes no trabalho que tentei desenvolver com eles, nos laços que criámos, tento perceber no que acertei e no que errei. Às vezes deixo-me envolver pelo senso comum e quase acredito que eles não gostam da escola... tenho lido tantas coisas, de tantos autores e por isso, outras vezes acho que eles deviam ter outra escola, mas ainda assim, há ciganos que aprendem, que vão à escola, eu também já os conheci.

Um beijo,
Mª Madalena Vieira

3 comentários:

CCF disse...

E como seria essa escola deles?
Parabéns pelo texto.
Beijinho
~CC~

Anónimo disse...

Obrigada, que bom que gostou professora amiga:)

Essa outra escola, seria uma escola onde os ciganos trabalhariam juntos na mesma sala, explorando a sua cultura e onde, por exemplo, semanalmente visitariam as outras salas, para apresentar trabalhos e contactarem formalmente com os outros alunos. Seria uma escola, que teria professores colocados, porque optaram por trabalhar com alunos ciganos. Professores voluntários para desempenhar este trabalho e não sujeitos ao " pim, pam, pum, calho eu ou calhas tu".

Sabe-se que existiria a possibilidade de criar " salas gueto" porque é dificil sustentar ideias diferentes, porque o diferente causa dúvida e receio. Mas também existiria a possibilidade de criar salas de miúdos felizes, digo eu!!!!

:) um beijo,
Madalena.

Anónimo disse...

A mim não me chocam estes conceitos, mais direccionados para determinados públicos.
A descriminação existe e "camuflada", isso é que não me parece correcto!
Quanto a pensar e aplicar teorias, sonhando e concretizando... isso é que nos pode tornar empreendedores e inovadores, numa profissão que cada vez é menos... tudo...

Beijos,
Nice*